ESPETÁCULO TEATRAL “ASFALTARAM A TERRA”

O projeto Asfaltaram a Terra é uma homenagem ao centenário de Samuel Beckett (1906-1989). Inspirado no dramaturgo irlandês, Gerald Thomas criou quatro irregulares espetáculos:
Asfaltaram o Beijo (Drama)
Gerald já é personagem por si só. E quando explora essa faceta, se dá bem. Assim começa Asfaltaram o Beijo, e é possível esboçar algumas risadas ao vê-lo se ironizando.
Se fosse apenas um “pocket-show”, Asfaltaram o Beijo até seria relevado, mas Gerald se leva a sério. Diante de uma foto com Beckett, aquele que deveria ser o reverenciado, ele começa a falar da suposta amizade com o dramaturgo e joga a ironia no ralo em nome do narcisismo. Em um teste de paciência do público, Gerald divaga sobre os rumos do teatro, a banalização dos clássicos e desaba no palco chorando copiosamente na frente da foto do autor de Esperando Godot enquanto a plateia, incrédula, boceja sem parar.

Brasas no Congelador (Comédia)

Quem vê Brasas no Congelador pode até pensar que Serginho Groisman nunca fez outra coisa na vida além de interpretar. Na pele de um atrapalhado sujeito que cai nas garras de um grupo à caça de terroristas, o apresentador de tevê surge em cena surpreendentemente à vontade e até deixa sua forte personalidade de lado nesta estreia como ator. Em Brasas no Congelador, Gerald abraça o que tem surtido mais efeito em suas peças recentes: o sarcasmo, o deboche, a desconstrução da sisudez teatral. Nada do que está em cena é levado a sério, nem mesmo a estrutura narrativa. E aí vem o principal comprometimento do espetáculo.
Nesta sátira ao pânico instaurado no planeta diante do terrorismo, o dramaturgo critica a falta de identidade e a fragilidade das pessoas diante das leis impostas por uma sociedade consumista. O personagem de Groisman carrega uma valise com as cinzas congeladas de um ente querido e é acusado de transportar urânio processado. Como numa comédia de erros, a cada explicação, ele se afunda mais e mais. E numa sucessão de absurdos, o próprio Gerald, vítima de si mesmo, fica visivelmente sem saber como concluir a história. Afinal, essa é a única justificativa para uma boa ideia que tem um desfecho sem explicação alguma. Vale por Serginho.

Um Bloco de Gelo em Chamas (Drama)

Luís Damasceno é um grande ator. Disso não se tem dúvida. A química entre ele e Gerald Thomas já atingiu o ápice em Nowhere Man, em 1996. Logo, o esperado reencontro faz de Um Bloco de Gelo em Chamas a maior aposta da tetralogia Asfaltaram a Terra.
É só Damasceno entrar em cena travestido de mulher para o público não segurar as gargalhadas. Ele interpreta a primeira-dama do teatro e do cinema nacional (seria uma alusão a Fernanda Montenegro?), que participa de um filme de quinta dirigido por seu marido. A crise se intensifica quando a diva descobre que o cineasta está de caso com um coadjuvante do elenco e, munida de algemas e chicotes, sai a vagar por clubes noturnos.
Absurdo total. E, mergulhado na farsa, Damasceno pinta e borda com seu personagem. Um Bloco de Gelo em Chamas é divertido enquanto Gerald está com os pés no chão. Critica os bastidores do mundo artístico, o despreparo dos atores e o drama dos mais experientes obrigados a contracenar com verdadeiras pedras de gelo. Na sucessão de fatos inusitados, Um Bloco… é vítima do mesmo mal deste projeto conjunto. Gerald abre muitas opções no texto e tropeça feio. Na cola de Beckett, ele prova ao público que não é Beckett, mas que provavelmente continuará na tentativa de ser. Damasceno em transe.

Terra em trânsito (Comédia)

Fabiana vive uma diva da ópera. Está trancada no camarim, entre fileiras de cocaína e muita indignação com sua vida sem graça, enquanto espera a hora de interpretar Tristão e Isolda. Quem lhe faz companhia é um cisne politicamente incorreto que foi a Woodstock, leu Nietzsche e declama Haroldo de Campos. Em Terra em Trânsito, Gerald sintetiza com louvor a proposta desta tetralogia: partindo das referências de Samuel Beckett, promove uma metáfora deste aterrorizado começo de século e da frivolidade das pessoas, inclusive dos ditos intelectuais.
Neste acerto, o diretor conta com a inusitada química entre Fabiana e o impagável cisne de esponja manipulado (e interpretado) por Juliano Antunes. Repleto de diálogos ferinos e muito engraçados, o verborrágico texto traz referências sofisticadas e prontas para serem digeridas por quem quiser apreciá-las, como nos melhores momentos de Gerald Thomas. A glória do cisne.
Esteve em cartaz no SESC Vila Mariana, em 2006, com direção de Gerald Thomas e Assessoria de Imprensa da Marra Comunicação.

FICHA TÉCNICA:

Autoria e direção: Gerald Thomas
elenco: Fabiana Gugli [Terra em Trânsito], Luiz Damasceno [Bloco de Gelo em Chamas], Serginho Groisman [Brasas no Congelador], Gerald Thomas [Asfaltaram o Beijo] e Amadeo Lamounier, Andrés Pérez Barrera, Anna Américo, Edson Montenegro, Fábio Pinheiro, Gerson Steves, Juliano Antunes, Luciana Ramanzini, Milena Milena, Narciso Tosti, Pancho Cappeletti, Péricles Martins, Renata Ferraz, Sonia Lopes
assistente de direção: Ruy Filho e André Bortolanza
cenário e direção de cena: Domingos Varella
trilha e som: Edson Secco
luz: Aline Santini
figurino: Antônio Guedes
direção de produção: Isabela Carvalho e Villy Ribeiro
assistente de produção: Carolina Maroni e Ricardo Frayha
técnico de som: Roberta Siviero
produção: Com Creta Produções
produtora associada: Pequena Central de Produções